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A execução precisa de justiça — não apenas de velocidade

  • danielavlav
  • 13 de mai.
  • 4 min de leitura

O relatório Justiça em Números 2024 revela que as execuções fiscais sozinhas representam 31% de todo o acervo nacional e 59% de todas as execuções pendentes, às quais se soma uma taxa média de congestionamento superior a 80%/Pixabay



Publicado em 13/05/2025 às 6:00

Daniela Poli Vlavianos*


A execução sempre foi apresentada como fase “meramente aritmética”, mas a experiência cotidiana demonstra o contrário. Quando o magistrado se limita a homologar planilhas unilaterais, a jurisdição abdica de seu papel contramajoritário e ignora o direito fundamental do executado a um exame efetivo — não simbólico — de suas teses. Essa garantia está na Constituição (arts. 5º XXXV, LIV e LV) e encontra reforço no art. 489, § 1º, do CPC, que impõe decisão motivada e enfrentamento de todos os argumentos capazes de conduzir a desfecho diverso.


O problema tornou-se estrutural. O relatório Justiça em Números 2024 revela que as execuções fiscais sozinhas representam 31% de todo o acervo nacional e 59% de todas as execuções pendentes, às quais se soma uma taxa média de congestionamento superior a 80%. Para cumprir metas de produtividade, muitos juízos aplicam despachos-modelo que, na prática, transformam o devedor em culpado presumido. O resultado é a homologação de cálculos com anatocismo, tarifas duplicadas e índices cumulativos que fazem o débito crescer em ritmo exponencial, especialmente nos contratos bancários.


Ultimamente, disseminou-se ainda nas varas cíveis de primeiro grau a prática de decretar a chamada “nulidade de algibeira” — vício formal sacado do bolso do magistrado, sem provocação das partes, para anular um ato processual e, com isso, contornar a necessidade de analisar o cerne do discutido. Apresentado sob o pretexto de zelo processual, esse expediente converte-se em trunfo para afastar defesas consistentes, pois bloqueia o exame de mérito e permite que a execução prossiga tal como proposta, sem análise profunda de determinada questão. Ao fazê-lo, o julgador frustra o princípio da congruência, desvirtua o impulso oficial e esvazia o próprio contraditório.


O Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente rechaçado essa superficialidade. No EDcl no AgInt no AREsp 1348888/SP (rel. Min. Og Fernandes, 2ª Turma, j. 19.9.2019) declarou-se a nulidade de acórdão porque o tribunal local não examinara fundamento relevante suscitado pelo devedor. A Corte repetiu a lição no AgInt no AREsp 2.172.535/SC (rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, j. 19.6.2023), negando provimento a agravo interno que alegava excesso de forma genérica, mas, ao mesmo tempo, reforçando a exigência de memória de cálculo idônea e sua análise criteriosa pelo julgador.


Também em sede de recurso repetitivo, o Superior Tribunal de Justiça firmou orientação que, longe de ampliar garantias, impôs nova barreira à proteção patrimonial mínima do devedor. No Tema 1.235 (REsp 2.061.973/PR e REsp 2.066.882/RS, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 7.10.2024), a Corte Especial decidiu que a impenhorabilidade de valores inferiores a quarenta salários-mínimos, prevista no art. 833, X, do CPC, não constitui matéria de ordem pública e, por isso, só pode ser reconhecida se for alegada na primeira oportunidade de manifestação nos autos.


O precedente, ao transformar uma salvaguarda legal em ônus processual, reduziu o contraditório a uma formalidade técnica, fragilizando a efetividade da proteção ao mínimo existencial e abrindo caminho para que valores de natureza alimentar sejam penhorados sem resistência judicial. Trata-se de mais um sinal de que o processo de execução vem se afastando do ideal de justiça material, privilegiando a celeridade em detrimento da legalidade.


Apesar desse panorama jurisprudencial, bloqueios em massa via SISBAJUD continuam a atingir salários, pensões e honorários advocatícios, ignorando a proteção legal. Pior: muitos magistrados desprezam prova pericial, homologam contas sem a oitiva de contadoria judicial e, não raramente, acumulam SELIC com juros remuneratórios de 1 % ao mês — prática já vetada pelo STJ. Quando a defesa apresenta exceção de pré-executividade ou embargos munidos de laudo técnico, a resposta costuma ser a pecha de “manobra protelatória”, expressão que revela mais impaciência do que análise jurídica.


É preciso desfazer o mito de que quem se defende não quer pagar. A advocacia especializada em execução busca garantir que o pagamento seja justo, limitado ao que a lei admite e comprovado por cálculos transparentes. Ao homologar quantias infladas, o Estado legitima enriquecimento sem causa, corrói o equilíbrio contratual (art. 113 do Código Civil) e desloca riqueza de maneira arbitrária, sufocando empresas, empregos e, em última análise, a própria arrecadação tributária.


A saída passa por mudança de cultura. Varas de execução precisam de contadoria permanente, perícia contábil prévia antes de qualquer penhora ou capacitação obrigatória de magistrados em finanças. Ferramentas de inteligência artificial podem auxiliar na triagem, mas nunca substituir o exame humano exigido pela Constituição. Enquanto decisões continuarem replicadas por copiar e colar, sem individualizar fatos e provas, os tribunais superiores seguirão anulando julgados e a sociedade continuará convencida de que o Judiciário prefere livrar-se do processo em vez de julgar com profundidade.


Defender o executado, portanto, não é favorecer inadimplência; é preservar a legitimidade da jurisdição executiva. Ao erguer essa bandeira, a advocacia cumpre função pública: depura excessos, protege o mínimo existencial e restaura confiança nos mecanismos de cobrança. Um processo que sacrifica patrimônio sem análise rigorosa não é célere; é inconstitucional. A execução só será eficaz quando for, antes de tudo, justa — e justiça começa pela garantia de defesa efetiva ao devedor.


Defender o executado, portanto, é exercício da advocacia em sua mais nobre forma — conforme previsto no art. 133 da Constituição —, pois busca impedir que o Estado, sem rigor técnico e sem contraditório, viole garantias fundamentais em nome de uma suposta celeridade.

*Daniela Poli Vlavianos é sócia do Poli Advogados & Associados.

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