Contraditório simbólico e o estigma do executado
- Daniela Poli Vlavianos
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Daniela Poli Vlavianos
O contraditório na execução tem sido reduzido a uma formalidade. Pior: nulidades relevantes são rotuladas como 'de algibeira' para evitar o exame de mérito.
Terça-feira, 27 de maio de 2025
Atualizado às 10:56
A execução civil, que deveria ser um instrumento de realização concreta do direito, tem se transformado, em muitos casos, em um campo de erosão das garantias fundamentais. Sob o pretexto de celeridade, muitos juízos reduzem o contraditório a um rito simbólico, esvaziado de conteúdo efetivo. O executado, por sua vez, é cada vez mais visto como um culpado por definição, alvo de medidas automáticas e da presunção implícita de má-fé.
Não é exagero afirmar que a defesa do executado se tornou um ato de resistência institucional. Em um sistema que preza pela produtividade, que mede êxito pela quantidade de atos praticados e não pela qualidade das decisões, advogar em execução é quase um trabalho de contracorrente. Quando a petição inicial vem acompanhada de planilha de débito unilateral, com juros compostos, tarifas cumuladas e cálculos ininteligíveis, não raro o juiz despacha em poucas linhas, deferindo penhora e bloqueios em massa. Tudo isso sem qualquer análise sobre a origem do valor ou a licitude dos encargos.
A famigerada "nulidade de algibeira" é um sintoma disso. Trata-se da resposta pejorativa utilizada por alguns magistrados para afastar nulidades arguidas com fundamento na fase oportuna pela defesa. Em vez de enfrentar o mérito da questão suscitada, rotula-se a arguição como de "algibeira", desqualificando o argumento para justificar a não apreciação da tese. Um exemplo emblemático é a nulidade decorrente da ausência de intimação pessoal do devedor nos termos do art. 513, §2º, I, do CPC, antes do início do cumprimento de sentença. Ainda que alegada na primeira oportunidade em que o executado falou nos autos, essa nulidade é muitas vezes sumariamente afastada sob a acusação de ser "de algibeira" por ter sido arguida anos após o fato, desconsiderando completamente o momento processual adequado para sua formulação. A jurisprudência do STJ tem exigido fundamentação adequada, inclusive quando se rejeitam preliminares relevantes (v.g., AgInt no AREsp 2.172.535/SC, rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, j. 19/06/2023). Ignorar nulidades como essa, sob o pretexto de serem "de algibeira", contribui para perpetuar ilegalidades com aparente respaldo judicial e esvazia o contraditório como garantia efetiva.
Mais grave que isso é o preconceito estrutural contra o executado. Por vezes, defender-se é sinônimo de tentar "ganhar tempo". Questionar a planilha é "manobra protelatória". Apresentar exceção de pré-executividade munida de parecer técnico passa a ser ato de má-fé presumida. Pouco importa se a execução está inflada, se os juros estão ilegais, se o valor cobrado ultrapassa em muito o que foi efetivamente contratado. O estigma do devedor gruda no processo, e é preciso esforço redobrado para provar não apenas o direito, mas a própria legitimidade da defesa.
Esse cenário revela o afastamento do ideal de justiça efetiva. A Constituição não garante apenas um processo rápido, mas sim um processo justo. O art. 5º, incisos XXXV, LIV e LV, assegura o acesso à justiça, o devido processo legal e a ampla defesa. E não há defesa ampla onde não há escuta real. O contraditório exige mais do que possibilitar peticionar. Exige que os argumentos sejam analisados, que as provas sejam valoradas e que o juiz decida com base na realidade concreta dos autos. É o que impõe o art. 489, § 1º, do CPC.
A execução não pode ser reduzida a um ritual de homologar e bloquear. Ela só será eficaz se for, antes de tudo, justa. Isso passa por combater o preconceito contra o devedor e por resgatar a importância da defesa técnica no processo. Defender o executado é exercer a advocacia em sua função mais nobre: assegurar que o poder do Estado seja exercido com responsabilidade, fundamento e respeito à legalidade. A justiça efetiva é aquela que ouve, pondera e julga com profundidade. Todo o resto é apenas administração de volume, não jurisdição no sentido pleno. #ExecuçãoCivil
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