O avanço da preclusão sobre a ordem pública.
- Daniela Poli Vlavianos
- 22 de mai.
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Daniela Poli Vlavianos
Análise crítica da relativização da ordem pública no processo de execução e dos riscos da aplicação da preclusão consumativa a vícios que deveriam ser reconhecidos de ofício.
Quarta-feira, 14 de maio de 2025
Atualizado às 14:58
Pode o Poder Judiciário fechar os olhos para uma nulidade insanável apenas porque ela não foi arguida no "momento certo"?
A ideia de que matérias de ordem pública se submetem à preclusão tem ganhado força, com consequências negativas. Embora haja um consenso maior quanto à possibilidade de alegação a qualquer tempo de questões como prescrição e ilegitimidade de parte, o debate sobre a preclusão da impenhorabilidade, por exemplo, está em ascensão. O que antes era consenso (o conhecimento de ofício, a qualquer tempo, de questões como a impenhorabilidade legal) vem sendo relativizado por decisões que condicionam seu conhecimento à alegação tempestiva pela parte.
Esse movimento ganhou contornos mais agressivos com o julgamento do Tema Repetitivo 1.235/STJ, que condicionou a análise da impenhorabilidade legal (art. 833, X, do CPC) à iniciativa da parte executada, no primeiro momento em que se manifestar nos autos, sob pena de preclusão. A consequência é grave: um direito legalmente indisponível passa a depender da iniciativa da parte - e, pior, dentro de um prazo estreito.
Mais do que um problema técnico, trata-se de um fenômeno que compromete a função contramajoritária do Judiciário, fragiliza a defesa do executado e transforma garantias constitucionais em armadilhas formais.
A tecnicização excessiva da preclusão na execução revela um aspecto perverso do formalismo contemporâneo: transforma o processo em um jogo de armadilhas, onde a parte executada, já em desvantagem, perde o direito de se defender por não ter identificado, a tempo, um vício que o próprio juízo poderia ter reconhecido de ofício. Essa busca de eficiência gera injustiça. Estabiliza-se o processo em detrimento da legalidade, e promove-se a celeridade em detrimento da verdade jurídica.
A preclusão consumativa: Origens, desvirtuação e inadequação à execução
A preclusão consumativa, instituto basilar do Direito Processual, tem suas raízes no direito romano, onde já se observava a preocupação com a ordenação do processo e a estabilidade das decisões judiciais. Ao longo da evolução histórica, o conceito de preclusão foi se aprimorando, influenciado pelo direito canônico e pelo Direito germânico, até atingir a conformação que hoje conhecemos.
A preclusão, em suas diversas modalidades (temporal, lógica e consumativa), tem como finalidade precípua ordenar o processo, dividindo-o em fases e impedindo o retrocesso; garantir a segurança jurídica e a estabilidade das decisões; e promover a celeridade processual, evitando a eternização dos litígios. Contudo, a preclusão não é um princípio absoluto e encontra limites em outros princípios processuais de igual ou maior hierarquia, como o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, além das matérias de ordem pública, que se subtraem ao seu alcance.
A preclusão consumativa, especificamente, implica a perda da faculdade processual pela prática do ato, independentemente do resultado útil que dele se possa extrair. Concebida originariamente para o processo de conhecimento, onde há uma fase instrutória ampla e um momento de estabilização da lide (o julgamento), a preclusão consumativa mostra-se inadequada ao processo de execução, que possui natureza diversa, cognição sumária e visa à satisfação de um direito já reconhecido (em tese).
A ideia de que a preclusão consumativa "sana" vícios da execução, como a ausência de título executivo ou a ilegitimidade de parte, é equivocada e perigosa. A exceção de pré-executividade, instrumento de controle da legalidade da execução, não pode ser limitada pela preclusão consumativa, sob pena de esvaziamento de sua função precípua.
Urge, portanto, uma interpretação restritiva da preclusão no processo executivo, aplicando-a apenas a atos que efetivamente comprometam o andamento do processo; a reafirmação da prevalência das matérias de ordem pública sobre a preclusão, permitindo sua alegação a qualquer tempo e grau de jurisdição; e, quiçá, a necessidade de reforma legislativa ou revisão da jurisprudência para adequar a aplicação da preclusão à natureza da execução.
Os desafios da defesa técnica na execução
A atuação do advogado que defende a parte executada tornou-se, nos últimos anos, um desafio complexo. A cada precedente que condiciona o conhecimento de certas matérias de ordem pública à "primeira oportunidade", a defesa técnica se vê mais limitada e cobrada por resultados em um ambiente desfavorável.
Na prática, essa orientação impõe à defesa uma lógica quase inquisitorial: a parte executada deve antecipar todos os vícios do processo, todos os fundamentos legais de impenhorabilidade, toda a análise da legitimidade e eventuais causas de extinção da obrigação. A inobservância dessa exigência leva à preclusão, impedindo o conhecimento de nulidades insanáveis e ilegalidades evidentes.
Essa exigência contraria a realidade da execução: muitas vezes, a parte executada só toma ciência efetiva do processo após o bloqueio de ativos ou a penhora de bens essenciais, quando já ocorreram várias manifestações unilaterais da parte exequente. Cria-se um paradoxo: impõe-se à parte um dever de vigilância sobre atos que lhe foram ocultados ou dos quais sequer participou.
Nesse contexto, a exceção de pré-executividade assume seu papel fundamental: não é uma faculdade, mas uma necessidade - um espaço de defesa diante de um processo que, estruturalmente, exclui a parte executada da formação do contraditório efetivo. Quanto mais os tribunais restringem a análise das matérias de ordem pública, mais evidente se torna o enfraquecimento do devido processo legal: a forma prevalece sobre o conteúdo, o formalismo se impõe sobre a justiça.
A defesa da parte executada, nesse cenário, exige não apenas conhecimento jurídico, mas também resistência institucional. É preciso defender, com clareza, que a legalidade é condição da execução, e não sua consequência. E que a ordem pública processual não pode ser relativizada por conveniência judicial ou pressões estatísticas.
O processo de execução civil tem sido distorcido por uma lógica que transforma garantias em obstáculos e a forma em fim. A exceção de pré-executividade, concebida como mecanismo de controle mínimo da legalidade, vem sendo esvaziada por interpretações que impõem à parte executada um ônus incompatível com os princípios constitucionais: demonstrar, de forma precoce e exaustiva, toda a sorte de ilegalidades, sob pena de preclusão.
Esse movimento revela uma tendência preocupante de priorizar a estabilidade formal sobre a legitimidade substancial do processo, como se fosse mais importante preservar a "ordem procedimental" do que corrigir atos com vícios insanáveis.
É fundamental reafirmar: certas matérias de ordem pública não precluem. Não porque o advogado as alegou ou não no momento "adequado", mas porque a Constituição, a lei e a boa técnica processual não permitem que o vício se perpetue apenas pela passagem do tempo.
Não há justiça onde a parte é ouvida apenas formalmente. Não há contraditório onde se ignora o conteúdo de suas alegações. E não há legalidade onde a nulidade é silenciada pelo tempo. A justiça não se constrói com atalhos formais.
Daniela Poli Vlavianos
Advogada civilista com 20 anos de experiência. Pós-graduada em Execução e Defesa do Executado. Atuação em execução cível e proteção patrimonial.
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